Ideias Livres

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

A América Latina em 3 actos

Como o AA bem me recordou, a 28 de Agosto chamei a atenção para um pequeno livro de Alvaro Vargas Llosa, que acabara de encomendar e prometera criticar mal o terminasse. Pois bem, acabei de o ler algures em Setembro e nunca mais disse nada. Como já lá iam uns meses, decidi lê-lo novamente e dar, finalmente, a minha opinião sobre a obra. Ao AA, agradeço o post-it.

The Che Guevara Myth and the Future of Liberty tem na capa o inefável Ernesto, com o seu ar de burguês radical very sixties que partiu corações na época e volta agora a partir os de muitos filhos dessa geração. Pequeno conjunto de 3 ensaios, com cerca de 70 páginas, The Che Guevara Myth tem como primeira parte a desmistificação do guerrilheiro argentino.

Tarefa relativamente simples para um historiador, Vargas Llosa limita-se a, páragrafo após parágrafo, descrever a personalidade colérica, fanática e sanguinolenta de Guevara, com base em entrevistas a pessoas que com ele contactaram e em documentos do domínio público, muitos deles de textos do próprio. Desmonta também a sua curta passagem pelo poder, em Cuba, onde, como governador do Banco de Cuba, responsável pela Reforma Agrária e ministro da Indústria conseguiu arrasar a indústria da cana do açúcar e conduzir o país para o racionamento - numa nação que fora, até poucos anos antes, a quarta mais rica da América Latina. Tido por quem trabalhou de perto com ele como "ignorante dos mais elementares princípios económicos", chegou a afirmar que em 1980 Cuba teria seguramente um PIB per capita superior ao dos Estados Unidos.
Como militar as suas opções deixam também muitas dúvidas. A sua passagem por África fica marcada pelo apoio a dois ditadores genocidas, Pierre Mulele e Laurent Kabila. Na América Latina, as revoluções fomentadas pelo movimento marxista conduziram apenas à instauração de ditaduras militares e populistas com consequências tremendas para a região.

A segunda parte, intitulada "Latin American Liberalism - A Mirage?" é, no fundo, uma tentativa muito interessante de justificar a deriva anti-liberal no sub-continente. A meu ver o melhor capítulo do livro, este identifica muitas das falhas culturais e institucionais e dos erros dos vários governos que fingiram liberalizar as economias, limitando-se a ceder a uma pequena elite a economia de Estado. Descrevendo acontecimentos muito semelhantes aos ocorridos também em Portugal nos últimos 30 anos, usa-os para justificar a incapacidade das economias para redistribuirem riqueza embora a criem, impedindo o desenvolvimento homogéneo e equilibrado das nações.

Finalmente a última parte, "The Individualist Legacy in Latin America" procura transmitir nos leitores uma mensagem de esperança, dando a conhecer alguns momentos de grande desenvolvimento da América Latina nos últimos 150 anos - em especial na Argentina - fruto de políticas liberais infelizmente destruídas por décadas de caudilhismo. Vargas Llosa reconhece também o mercado negro, com um enorme peso na economia latino-americana, como reacção popular à exploração que têm sofrido pelas elites que se apropriaram do Estado e da Justiça, mas que não os conseguirá tirar do patamar da subsistência por ausência de mecanismos de transparência e universalidade, só possíveis aos olhos da lei.

Uma obra curta, sintética e de fácil leitura, de um autor a quem o afastamento geográfico e a formação académica permitiram uma clarividência rara.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Economist 101

Duas notícias interessantes no Economist da semana passada:

1. A procura de milho para produção de bioetanol (o vulgar álcool), combustível componente da gasolina fortemente subsidiado nos EUA por força do lobby dos agricultores do Midwest - e também nalguns países europeus, como a França, onde o mesmo lobby tem uma enorme força - está já a criar as primeiras ondas de choque.
Aparentemente, o preço do milho terá disparado nos EUA, levando os consumidores americanos a procurar produto no vizinho do Sul. Ora o milho, através do seu principal destino, a tortilha, é a base da alimentação mexicana: tacos e enchiladas não existem sem ela e o seu preço duplicou nos últimos meses.
Este é o primeiro sinal de muitos que o mercado dará, à medida que os vários subsídios estatais para a produção de energia não-fóssil forem sendo distribuídos, de forma muitas vezes contraditória e ao sabor do vento político, pelos vários governos do 1º mundo.
Uma vez mais, os políticos voltaram a ceder ao populismo e aos grupos de pressão. Desta feita, no sector da energia, mas com implicações em toda a cadeia alimentar. Teme-se já uma escalada nos preços dos cereais a nível mundial à custa dos subsídios e quotas estabelecidos. Muito me resta ainda dizer sobre esta tema mas palpita-me que, infelizmente, terei inúmeras oportunidades pela frente.

2. Riquexós em Calcutá

O governo comunista da região de Bengala, na Índia, cuja capital é Calcutá, decidiu proibir os riquexós puxados pelo homem, por considerá-los inumanos.
Como os conceitos de humanidade não se estabelecem por decreto, cerca de 18.000 puxadores de riquexós protestam contra esta vontade por destruir o seu ganha-pão. Estes homens vêm normalmente de regiões mais pobres da Índia (normalmente de Bihar) e têm em Calcutá a possibilidade de ter um trabalho devidamente remunerado e uma vida organizada. Infelizmente, parece que os marxistas de Bengala acham que puxar riquexós à mão é uma actividade degradante e é claramente melhor não ter emprego e pedir pelas ruas. O comunismo ao serviço do povo, again and again.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O direito à paternidade

Uma das principais falhas da pergunta que se levará a referendo no próximo dia 11, reconhecida mesmo por muitos daqueles que pensam votar ‘Sim’, prende-se com a total ignorância da mesma quanto aos direitos do pai da criança em gestação. Esta lacuna, que não poderá ser corrigida caso o ‘Sim’ vença, visto a questão ser bem explícita quanto à autorização que considera necessária para a realização do aborto – única e exclusivamente a da mãe, por omissão propositada – cria um precedente legal cujas consequências estamos longe de compreender na sua totalidade.

Ao dispensar o acordo do pai para ordenar a eliminação da vida do feto, podemos estar a criar as condições para a total desresponsabilização masculina em relação à gravidez não desejada por si. Mesmo nos casos em que uma mãe decida dar à luz, qualquer pai poderá, caso queira, recusar-se a apoiá-la, usando como argumento a sua preferência pelo aborto. Perante um juiz, facilmente proclamará: “Se não posso ser responsável na morte da criança, também não o serei na sua vida. Se um feto morre sem pai, uma criança também vive sem ele!” ou mesmo “Sôtor, já viu a minha vida? Eu não tenho nada! E esta louca recusou-se a dar-me ouvidos e a abortar!”. Um juiz mais assertivo poderá responder-lhe que deveria ter pensado nisso no dia em que concebeu a criança mas, se o ‘Sim’ tiver ganho, esse argumento terá muito pouca validade…

O que eu pergunto é como é que o nosso parlamento aprovou uma questão tão discriminatória. É natural que as ideias dos socialistas utópicos do século XIX, como Charles Fourier, que defendiam que o conceito de paternidade não passava de uma artificialidade social, não sendo uma tendência natural do ser humano, razão pela qual deveria ser abandonado, tenham influenciado mentes mais iluminadas como as de Ana Drago, Ana Gomes ou Helena Roseta. Mas duvido muito que, para a maioria dos nossos deputados, essa ideia vingue – mesmo crendo que a conhecem.

Assim sendo, resta-me considerar que grande parte do nosso parlamento não só foi enganado como ainda não se terá apercebido da potencial gravidade conceptual desta pergunta no que à relação pai-mãe-filho diz respeito. Com a sua aprovação, um pai deixará, em abstracto, de o ser, transformando-se em mero inseminador. Passará de pai-amigo a pai-abelha...

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