Ideias Livres

quarta-feira, janeiro 24, 2007

A fina película dos direitos de um humano

Quando ouvimos notícias sobre alguma criança que morreu, ficamos, de um modo geral, chocados. “Tinha a vida toda pela frente!”, costuma-se dizer. Ficamos com um sabor de injustiça na boca. De que algo de incrivelmente errado aconteceu. Devemos muita desta sensação ao fantástico trabalho que todos nós, seres humanos, temos feito nos últimos séculos, para combater as complicações ao longo da gravidez e a mortalidade infantil. Assumimos, enquanto colectivo formado pela soma das vontades de cada um, a missão de criar os nossos filhos. A dada altura, considerámos – a meu ver até muitas vezes de forma abusiva – que tínhamos o direito de controlar o modo como os futuros adultos eram conduzidos ao patamar de iguais pelos seus pais. Hoje, os maus-tratos infantis são vistos como um acto repugnante e retrógrado, fruto de mentes doentes ou ignorantes e, independentemente da causa, punidos pela lei, que protege os direitos dos menores dos erros dos progenitores.

O que diferencia então, de sobremaneira, uma criança de 3 anos de um feto de 10 semanas, que não permita à segunda direitos semelhantes aos da primeira? Pessoalmente, a primeira memória de que me recordo data dos meus 4 anos. Antes disso, nada... É a memória que nos torna humanos? Se a grande fronteira em termos de direitos de cidadania está no momento do parto, pergunto: seremos assim tão diferentes nos momentos que antecedem e procedem o parto? Será que o direito à vida requer a capacidade de respiração pulmonar e de parar de nadar numa almofada de líquido? É aquela fina camada de pele que nos separa das cartilhas internacionais de direitos humanos, quando é hoje sabido que o processo de desenvolvimento cerebral e intelectual começa muito antes? Ou seremos capazes de assumir que, apesar de ainda não lhe vermos o rosto nem lhe ouvirmos as primeiras palavras, qualquer grávida transporta dentro de si um ser humano que, embora dependente dela, evoluirá lenta e continuamente para a autonomia total e que, um dia, muito anos depois, lhe estará destinado o papel de a proteger e apoiar – e mesmo tal não sucedendo, caberá à sociedade a obrigação de o fazer, não o abandonando como se pretende com a proposta de referendo que se avizinha.

Um manifesto ateu e liberal pela defesa da vida

Muitos dos militantes pelo ‘Sim’ à despenalização do aborto têm ao longo dos anos tentado transformar os defensores do ‘Não’ em ratos de sacristia, fantoches de uma organização pretensamente manipuladora e poderosa que, camuflando-se na sociedade civil, tentava evitar os grandes movimentos reformistas da Humanidade.

Para eles em especial, aqui vai o meu testemunho pessoal:

Sou ateu – nalgumas matérias até anti-clerical - e profundamente liberal, colocando o indivíduo e os seus direitos quase sempre à frente dos direitos de qualquer colectivo abstracto, seja ele o Estado, a Pátria ou o Povo.

Não considero aceitável que terceiros tenham o direito de interferir nas minhas escolhas e de proibir os meus hábitos assim como não julgo que tenha o direito de os culpar pelas minhas escolhas, ocasionalmente erradas. Como ser humano considero-me responsável por todos os meus actos, mesmo os mais irresponsáveis, e responderei sempre por eles, sem por uma vez me escudar atrás dos meus pares.

Apesar de tudo o que acima disse, voto convictamente ‘Não’ à despenalização do aborto até às 10 semanas, em plena coerência com os meus ideais.

Voto ‘Não’ porque, como ateu, reconheço à vida um carácter único e incomparável e à consciência humana o limiar máximo dessa consciência. Afastar para sempre alguém dessa percepção sensorial e intelectual é um crime, esteja ou não escrito na lei.

Voto ‘Não’ porque reconheço ao feto, como aos restantes seres humanos, o direito inalienável à vida – a não ser por decisão própria, impossível de tomar conscientemente mas no qual enquadro os casos de malformação e morte intra-uterina, ou em situação de conflito de interesses de igual dimensão entre o feto e a mãe, como seja o risco de vida físico ou psicológico da mãe, onde se enquadram de um modo geral as restantes situações já salvaguardas pela lei.

Voto ‘Não’ porque, embora não me agrade ver mulheres julgadas pela prática do aborto, não me desagrada mais do que muitas outras situações que conduzem muitos outros cidadãos à prisão, a maioria das quais por crimes que não atentaram contra qualquer vida mas que a sociedade considerou suficientemente graves para serem criminalizados. Essa discussão poderá ser tida após o referendo, em sede parlamentar, mas sem desculpabilizar a prática do aborto.

Voto ‘Não’ porque acredito que a liberdade é directamente proporcional à responsabilidade individual e ao diminuirmos a segunda estaremos inexoravelmente a abdicar da primeira.

(publicado em simultâneo no Ideias Livres e no blogue do não, o que sucederá com todas as postas relacionadas com o tema do aborto nos tempos mais próximos)

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Uma questão de escrúpulos

- Conduzir sob efeito do álcool
- Estacionar no meio da rua
- Fugir ao fisco
- Vazar poluentes tóxicos para os rios
- Insultar pessoas com base nas suas características raciais ou opções sexuais
- Explorar emigrantes ilegais
- Abortar

Estes actos são todos eticamente condenáveis.
Todos eles acontecem por ignorância e falta de civismo.
Todos eles são punidos pela lei.
Porque há valores de que não podemos abdicar.

O regresso

Depois de um período sabático forçado, por clara falta de tempo, tenciono regressar com a periodicidade habitual a lançar Ideias Livres. O mundo muda num segundo e, se nada fizermos em contrário, tende a mudar sem contar connosco. Temos, por isso, a obrigação de defendermos os nossos direitos pessoais e valores civilizacionais com intransigência. E é isso que espero continuar a fazer.