Um mundo irreal 3 - As "drogas"
Prossegui o meu caminho pelas ruas de Aobsil, capital de Lagutrop, tentando compreender um país e uma sociedade tão parecidos e, por outro lado, tão antagónicos dos meus. Embora, em teoria, tivessem os mesmos hábitos que os portugueses, na prática a sua relação com eles era totalmente distinta.
Descia uma larga avenida, quando passei por uma loja que me despertou a atenção. O letreiro dizia "Coca Central". Por dentro, parecia uma pastelaria normalíssima, devia ser um dos recém-privatizados estabelecimentos de que me falara o tipo na Pastelaria Municipal.
Entrei. Bom, isto já se parecia mais com um café! Estava um bocado às moscas, é verdade, os preços deviam ser de facto proibitivos... Pelo sim, pelo não, queria tirar as minhas dúvidas sem ficar falido. Ia beber uma bica, coisa que ainda não tinha feito desde que ali chegara - nem sequer vira referência a café na pastelaria municipal... - e já estava a sentir-lhe a falta.
Cheguei-me ao balcão e, ao aproximar-se um empregado, pedi "um cafézinho, se faz favor, que já estou a ressacar...eheheh". O homem olhou para mim como se tivesse visto um fantasma. "Você é doido? Quer-me espantar a clientela? Isto aqui é gente decente, hein? Não há cá drogados!". Esta terra era um poço de surpresas... "Calma, calma, desculpe, mas eu disse alguma coisa de errado? Só pedi uma bica! Na minha terra isso nunca foi um crime! Desde quando é que não se pode beber um café para arregalar a pestana?". "Olhe", disse-me o balconista "eu 'tou-me nas tintas para donde é que você vem, mas aqui pia mais fininho, está ouvir? Quer-se drogar, vai lá pá sua terra!". Aquilo estava-me a deixar maluco. Estava visto que o café era uma substância proibida em Lagutrop... mas não me fiquei:"Esta terra é de chorar a rir! Proíbem o café e chamam "Coca" às pastelarias! Eheheh, sim senhores, vocês são de uma coerência..."
O tipo estava fora de si e desatou aos gritos: "Mas você está a comparar a coca, uma coisa inofensiva que toda a gente toma, com uma substância como a cafeína, que desgraça a nossa juventude? Há malta que devia pagar imposto para abrir a boca!".
Ia a sair daquele sítio quando, de uma mesa perto da porta, se levantou um senhor de meia-idade que me dirigiu a palavra, dizendo: "Desculpe lá esta situação, mas às vezes as diferenças culturais causam estes mal-entendidos... Sabe que em tempos o café já foi permitido em Lagutrop e nos restantes países de Aporue, mas certos grupos de pressão conseguiram bani-los. Tem sido sempre assim... Como a cultura da coca e do cânhamo têm uma grande tradição na nossa cultura e um grande peso na economia, ao contrário do café e dos compostos alcoólicos, os seus produtores conseguiram fazer com que o Estado proibisse o seu consumo, pois sentiam-se ameaçados por tal concorrência. E nada como estigmatizar para convencer as pessoas e diminuir a contestação." Confirmava-se a minha ideia inicial. Aquele país era uma caixinha de surpresas... Ele continuou: "Temos hoje um problema gravíssimo com as drogas proibidas. Milhares e milhares de pessoas nas nossas cadeias por tráfico de café e álcool, pessoas que, se essas substâncias não fossem proibidas, nunca teriam sido presas e teriam os seus negócios, criando riqueza e pagando os seus impostos. Já para não falar na quantidade de outros crimes, muitos deles violentos e com enormes custos sociais, perpetrados em consequência da prática desta actividade clandestina, os quais também não aconteceriam caso ela fosse legal."
As palavras daquele homem faziam todo o sentido. Não só para a realidade lagutropiana mas para a portuguesa. Qual é a diferença entre uns putos que organizam festas de escola, com cerveja e música, e os outros, que vendem uns charros no pátio da escola? Muito pouca... mas uns são uns "putos cheios de iniciativa" e outros uns "marginais"... Estava a pensar nisto quando o meu interlocutor voltou ao ataque. "E a quantidade de jovens que morrem com álcool martelado, à semelhança do que aconteceu nos Estados Unidos durante a Proibição? Todos estes produtos, se o seu consumo e comercialização estivessem legalizados, teriam rigorosos controlos de qualidade, informação anexa explicando os seus efeitos e malefícios, o devido enquadramento social e legal... deixa-me revoltado!"
-Desculpe lá, isto é muita informação ao mesmo tempo e estou um pouco baralhado. Se percebi bem, em Lagutrop está proibido o consumo de café e álcool, mas é autorizado o consumo de haxixe e cocaína, é isso?
-Exactamente, entre outras drogas também permitidas.
-É totalmente o contrário do que acontece no meu país! Temos uma enorme tradição relacionada com a produção de bebidas alcoólicas mas de resto - tirando o café, claro - nada é permitido. Mas, diga-me lá, onde é que compram essas substâncias?
- Em cocas, como esta, nos supermercados, em lojas especializadas, onde se quiser!
- Aqui? mas vocês snifam coca aqui, nas mesas???
- Snifar? Não! A malta toma coca em infusão. Em chá, está a ver?
- Ah, ok, como nós tomamos o que chamamos de "café"...
- Faz sentido. Curiosamente, aqui, caminhou-se no sentido oposto. Dada a proibição, os traficantes tentaram aumentar ao máximo a concentração dos produtos para conseguir fazer entrar no mercado a maior quantidade de substância, com o menor risco possível. E não era com sacas de grãos de café, não é? Então começaram a separar a cafeína e a vendê-la em pó. É a droga da moda na alta sociedade! Os yuppies todos dão na "bica" como gente grande!
Desatei a rir. Tudo aquilo era demais. Dar na "bica"? Como é que fariam com o galão, misturavam leite em pó?
- Quer dizer que, aqui, ninguém toma cocaína pura?
- Bom, há nas farmácias, como estimulante, em comprimidos. É de receita livre e há-de haver quem tenha uma certa habituação mas malta drunfada por aí é mato, não é verdade? Todos temos as nossas dependências e, se quer que lhe diga, acho que ninguém tem nada a ver com isso a não sermos nós. Eu, por exemplo, pelo-me por uma boa alheira. Não há semana em que não dê cabo de uma. Rebenta-me com a saúde, é verdade, mas é a minha vida, não é? Estou informado, sei quais são os meus riscos, acho que chega.
- Você tem uma certa razão, mas estas drogas provocam mudanças comportamentais nas pessoas, com riscos para os que os rodeiam, não acha? A sociedade tem de minimizar esses riscos...
- Olhe, não conheço ninguém que ande por aí aos tombos por fumar um charro. Bom, tirando um ou outro miúdo que nunca tinha fumado e aquilo bateu mal... Para nós, que estamos habituados, deve ser como na sua terra beber um pouco de álcool, não? Para relaxar um bocadinho, acalmar depois de um dia de trabalho... a coisa boa é que não engorda, eheheh... Agora, se se abusa, é claro que corre mal... mas isso acontece quase com tudo, não acha? Mande lá uma garrafa de concentrado de álcool abaixo a ver se não vai parar ao hospital...
O balconista apareceu de repente e, não estando a gostar da conversa, correu-nos aos dois do seu estabelecimento. "'Tão pr'aí a falar de drogas e mais drogas e nem uma cocazinha tomam, ponham-se a andar. Querem-se divertir, vão a um alucinema que é para isso que eles existem!" e virou-nos costas.
- Alucinema? O que é isto?
- Ora, é um local onde as pessoas vão e se sentam em grandes pufes. À entrada é-lhes dada uma garrafa de água e um comprimido com um alucinogéneo. Temos alucinemas para rir, outros mais introspectivos, que fazem pensar a condição humana, outros ainda de acção. Consoante o género, varia o tipo de comprimido, para se adequar ao filme projectado em tela. As substâncias tomadas, em concentrações muito pequenas, permitem uma interessante interactividade aparente - ou alucinação, como lhe chamamos - com o filme. É um mercado que tem evoluído muito, sabe? Todos os meses há novos filmes, todos os anos aparecem novas substâncias ou misturas de várias que permitem uma diferente alucinação.
- Epá, não tomei nada e já me sinto a alucinar! Acho que vou andando! Gostei muito de o conhecer!
Que terra espantosa - bom, tirando a proibição do café e do álcool, que não passam pela cabeça de ninguém... que mais iria descobrir em Lagutrop?
Descia uma larga avenida, quando passei por uma loja que me despertou a atenção. O letreiro dizia "Coca Central". Por dentro, parecia uma pastelaria normalíssima, devia ser um dos recém-privatizados estabelecimentos de que me falara o tipo na Pastelaria Municipal.
Entrei. Bom, isto já se parecia mais com um café! Estava um bocado às moscas, é verdade, os preços deviam ser de facto proibitivos... Pelo sim, pelo não, queria tirar as minhas dúvidas sem ficar falido. Ia beber uma bica, coisa que ainda não tinha feito desde que ali chegara - nem sequer vira referência a café na pastelaria municipal... - e já estava a sentir-lhe a falta.
Cheguei-me ao balcão e, ao aproximar-se um empregado, pedi "um cafézinho, se faz favor, que já estou a ressacar...eheheh". O homem olhou para mim como se tivesse visto um fantasma. "Você é doido? Quer-me espantar a clientela? Isto aqui é gente decente, hein? Não há cá drogados!". Esta terra era um poço de surpresas... "Calma, calma, desculpe, mas eu disse alguma coisa de errado? Só pedi uma bica! Na minha terra isso nunca foi um crime! Desde quando é que não se pode beber um café para arregalar a pestana?". "Olhe", disse-me o balconista "eu 'tou-me nas tintas para donde é que você vem, mas aqui pia mais fininho, está ouvir? Quer-se drogar, vai lá pá sua terra!". Aquilo estava-me a deixar maluco. Estava visto que o café era uma substância proibida em Lagutrop... mas não me fiquei:"Esta terra é de chorar a rir! Proíbem o café e chamam "Coca" às pastelarias! Eheheh, sim senhores, vocês são de uma coerência..."
O tipo estava fora de si e desatou aos gritos: "Mas você está a comparar a coca, uma coisa inofensiva que toda a gente toma, com uma substância como a cafeína, que desgraça a nossa juventude? Há malta que devia pagar imposto para abrir a boca!".
Ia a sair daquele sítio quando, de uma mesa perto da porta, se levantou um senhor de meia-idade que me dirigiu a palavra, dizendo: "Desculpe lá esta situação, mas às vezes as diferenças culturais causam estes mal-entendidos... Sabe que em tempos o café já foi permitido em Lagutrop e nos restantes países de Aporue, mas certos grupos de pressão conseguiram bani-los. Tem sido sempre assim... Como a cultura da coca e do cânhamo têm uma grande tradição na nossa cultura e um grande peso na economia, ao contrário do café e dos compostos alcoólicos, os seus produtores conseguiram fazer com que o Estado proibisse o seu consumo, pois sentiam-se ameaçados por tal concorrência. E nada como estigmatizar para convencer as pessoas e diminuir a contestação." Confirmava-se a minha ideia inicial. Aquele país era uma caixinha de surpresas... Ele continuou: "Temos hoje um problema gravíssimo com as drogas proibidas. Milhares e milhares de pessoas nas nossas cadeias por tráfico de café e álcool, pessoas que, se essas substâncias não fossem proibidas, nunca teriam sido presas e teriam os seus negócios, criando riqueza e pagando os seus impostos. Já para não falar na quantidade de outros crimes, muitos deles violentos e com enormes custos sociais, perpetrados em consequência da prática desta actividade clandestina, os quais também não aconteceriam caso ela fosse legal."
As palavras daquele homem faziam todo o sentido. Não só para a realidade lagutropiana mas para a portuguesa. Qual é a diferença entre uns putos que organizam festas de escola, com cerveja e música, e os outros, que vendem uns charros no pátio da escola? Muito pouca... mas uns são uns "putos cheios de iniciativa" e outros uns "marginais"... Estava a pensar nisto quando o meu interlocutor voltou ao ataque. "E a quantidade de jovens que morrem com álcool martelado, à semelhança do que aconteceu nos Estados Unidos durante a Proibição? Todos estes produtos, se o seu consumo e comercialização estivessem legalizados, teriam rigorosos controlos de qualidade, informação anexa explicando os seus efeitos e malefícios, o devido enquadramento social e legal... deixa-me revoltado!"
-Desculpe lá, isto é muita informação ao mesmo tempo e estou um pouco baralhado. Se percebi bem, em Lagutrop está proibido o consumo de café e álcool, mas é autorizado o consumo de haxixe e cocaína, é isso?
-Exactamente, entre outras drogas também permitidas.
-É totalmente o contrário do que acontece no meu país! Temos uma enorme tradição relacionada com a produção de bebidas alcoólicas mas de resto - tirando o café, claro - nada é permitido. Mas, diga-me lá, onde é que compram essas substâncias?
- Em cocas, como esta, nos supermercados, em lojas especializadas, onde se quiser!
- Aqui? mas vocês snifam coca aqui, nas mesas???
- Snifar? Não! A malta toma coca em infusão. Em chá, está a ver?
- Ah, ok, como nós tomamos o que chamamos de "café"...
- Faz sentido. Curiosamente, aqui, caminhou-se no sentido oposto. Dada a proibição, os traficantes tentaram aumentar ao máximo a concentração dos produtos para conseguir fazer entrar no mercado a maior quantidade de substância, com o menor risco possível. E não era com sacas de grãos de café, não é? Então começaram a separar a cafeína e a vendê-la em pó. É a droga da moda na alta sociedade! Os yuppies todos dão na "bica" como gente grande!
Desatei a rir. Tudo aquilo era demais. Dar na "bica"? Como é que fariam com o galão, misturavam leite em pó?
- Quer dizer que, aqui, ninguém toma cocaína pura?
- Bom, há nas farmácias, como estimulante, em comprimidos. É de receita livre e há-de haver quem tenha uma certa habituação mas malta drunfada por aí é mato, não é verdade? Todos temos as nossas dependências e, se quer que lhe diga, acho que ninguém tem nada a ver com isso a não sermos nós. Eu, por exemplo, pelo-me por uma boa alheira. Não há semana em que não dê cabo de uma. Rebenta-me com a saúde, é verdade, mas é a minha vida, não é? Estou informado, sei quais são os meus riscos, acho que chega.
- Você tem uma certa razão, mas estas drogas provocam mudanças comportamentais nas pessoas, com riscos para os que os rodeiam, não acha? A sociedade tem de minimizar esses riscos...
- Olhe, não conheço ninguém que ande por aí aos tombos por fumar um charro. Bom, tirando um ou outro miúdo que nunca tinha fumado e aquilo bateu mal... Para nós, que estamos habituados, deve ser como na sua terra beber um pouco de álcool, não? Para relaxar um bocadinho, acalmar depois de um dia de trabalho... a coisa boa é que não engorda, eheheh... Agora, se se abusa, é claro que corre mal... mas isso acontece quase com tudo, não acha? Mande lá uma garrafa de concentrado de álcool abaixo a ver se não vai parar ao hospital...
O balconista apareceu de repente e, não estando a gostar da conversa, correu-nos aos dois do seu estabelecimento. "'Tão pr'aí a falar de drogas e mais drogas e nem uma cocazinha tomam, ponham-se a andar. Querem-se divertir, vão a um alucinema que é para isso que eles existem!" e virou-nos costas.
- Alucinema? O que é isto?
- Ora, é um local onde as pessoas vão e se sentam em grandes pufes. À entrada é-lhes dada uma garrafa de água e um comprimido com um alucinogéneo. Temos alucinemas para rir, outros mais introspectivos, que fazem pensar a condição humana, outros ainda de acção. Consoante o género, varia o tipo de comprimido, para se adequar ao filme projectado em tela. As substâncias tomadas, em concentrações muito pequenas, permitem uma interessante interactividade aparente - ou alucinação, como lhe chamamos - com o filme. É um mercado que tem evoluído muito, sabe? Todos os meses há novos filmes, todos os anos aparecem novas substâncias ou misturas de várias que permitem uma diferente alucinação.
- Epá, não tomei nada e já me sinto a alucinar! Acho que vou andando! Gostei muito de o conhecer!
Que terra espantosa - bom, tirando a proibição do café e do álcool, que não passam pela cabeça de ninguém... que mais iria descobrir em Lagutrop?
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