Ideias Livres

domingo, agosto 07, 2005

Uma fogueira chamada Portugal

Recebi de um amigo uma carta aberta intitulada "A Indústria dos Incêndios", supostamente assinada pelo sub-director de Informação da SIC, José Gomes Ferreira (JGF), em que este se indigna perante a calamidade incendiária que anualmente varre o país de Norte a Sul. Segundo ele, há todo um negócio que gira em torno da madeira, dos terrenos ardidos e do próprio combate aos fogos que encontra incentivo económico para encher o país de chamas. Nesta carta, José Gomes Ferreira aborda uma sequência de assuntos cujo pólo agregador são os incêndios, tentando potenciar algumas possíveis medidas para mudar as coisas. Tentarei analisar algumas das suas críticas e propostas, no sentido de desenhar uma possível alternativa à realidade que existe e às propostas de JGF.

1 - Porque é que o combate aéreo aos incêndios em Portugal é TOTALMENTE concessionado a empresas privadas, ao contrário do que acontece noutros países europeus da orla mediterrânica? Porque é que os testemunhos populares sobre o início de incêndios em várias frentes imediatamente após a passagem de aeronaves continuam sem investigação após tantos anos de ocorrências? Porque é que o Estado tem 700 milhões de euros para comprar dois submarinos e não tem metade dessa verba para comprar uma dúzia de aviões Cannadair? Porque é que há pilotos da Força Aérea formados para combater incêndios e que passam o Verão desocupados nos quartéis? Porque é que as Forças Armadas encomendaram novos helicópteros sem estarem adaptados ao combate a incêndios? Pode o país dar-se a esse luxo?

Julgo que é importante não confundir nunca a função dos bombeiros com a das Forças Armadas, sob risco de continuar a insisitir num modelo voluntarista e pouco profissional de combate ao fogo. Agora que acabou o Serviço Militar Obrigatório, que colocava nos quartéis milhares de jovens sem ocupação, a desperdiçarem o seu tempo em actividades inúteis como montar e desmontar espingardas e pistolas, deixou de fazer sentido a utilização de militares de carreira, com funções próprias dentro da hierarquia das FA's, em programas de desmatação ou de combate a incêndios. Pode-se discutir a utilização dos escassos recursos financeiros que temos em equipamento militar ou civil, mas não se pode confundir as missões das duas carreiras.
Devemos, isso sim, criar uma estrutura profissional de bombeiros, à semelhança da da polícia, como acontece nos Estados Unidos, acabando com a figura do bombeiro voluntário que faz hoje tanto sentido como faria a do polícia voluntário. Só com bombeiros profissionais, que durante o Inverno poderiam desempenhar funções de fiscalização das matas ou mesmo de desmatação, e que deveriam estar devidamente equipados para o combate ao fogo, poderemos tentar melhorar a situação. O típico voluntarismo de cariz socialista, a fazer lembrar o combate maoísta às pragas de gafanhotos, que levou à destruição das colheitas e à famina generalizada, não permite optimizar recursos humanos e materiais.
Quanto ao eventual incentivo que exista para que empresas privadas de aviação especializadas ao combate a fogos promovam o aparecimento desses mesmos fogos, essa realidade poderia ser facilmente alterada se o Estado estabelecesse contratos com essas empresas, não em função das horas de utilização no combate às chamas, que "incentiva" a existência de incêndios, mas por um período de tempo, como uma avença. Se o pagamento a estas empresas não tiver qualquer tipo de proporcionalidade directa com o nº de fogos, o incentivo à ignição de fogos termina.

2 - A maior parte da madeira usada pelas celuloses para produzir pasta de papel pode ser utilizada após a passagem do fogo sem grandes perdas de qualidade. No entanto, os madeireiros pagam um terço do valor aos produtores florestais. Quem ganha com o negócio? Há poucas semanas foi detido mais um madeireiro intermediário na Zona Centro, por suspeita de fogo posto. Estranhamente, as autoridades continuam a dizer que não há motivações económicas nos incêndios...

Não conhecendo esta realidade, é-me dado a entender pelas palavras de JGF que os madeireiros, intermediários no negócio da pasta de papel, conseguem comprar a madeira a um terço do preço da madeira não ardida. Numa perspectiva de mercado, não compreendo porque é que os donos da madeira a vendem a tal preço se o seu valor para as celuloses é o mesmo. Será por ignorância e falta de liquidez no mercado? Se assim fôr, poder-se-ia criar um Mercado de Madeira Ardida, onde todos os proprietários venderiam a sua madeira a madeireiros ou, até, directamente às celuloses. Seguramente que, aumentando a liquidez e a transparência dos preços, esse negócio da China tenderia a encontrar um equilíbrio de mercado.

3 - Se as autoridades não conhecem casos, muitos jornalistas deste país, sobretudo os que se especializaram na área do ambiente, podem indicar terrenos onde se registaram incêndios há poucos anos e que já estão urbanizados ou em vias de o ser, contra o que diz a lei.

Este é um caso típico de corrupção pública, que acontece com ou sem incêndios, com mexidas no PDM antecedidas de compras e vendas de propriedades nos terrenos envolvidos. É um caso de polícia e de tribunal.

4 - À redacção da SIC e de outros órgãos de informação chegaram cartas e telefonemas anónimos do seguinte teor: "enquanto houver reservas de caça associativa e turística em Portugal, o país vai continuar a arder". Uma clara vingança de quem não quer pagar para caçar nestes espaços e pretende o regresso ao regime livre.

O direito à propriedade é fundamental para a existência de uma democracia liberal como a nossa pretende ser e o fim do regime livre de caça foi uma benção para todos os proprietários que se viam acossados nos seus próprios terrenos durante a época de caça. Sempre existirão interesses egoístas e cobardes e para os combater temos, como no ponto interior, os braços policial e judicial do Estado.

Infelizmente, JGF acaba por fazer sugestões que em pouco ajudarão a melhorar o estado das coisas, como por exemplo "Distribuir as forças militares pela floresta, durante todo o Verão, em acções de vigilância permanente." Não é para isto que temos FA's. Se o nosso Exército tem soldados profissionais para fazer este tipo de vigilância, então tem gente a mais à custa do contribuinte. Desvinculem-no do Exército e ofereçam-lhe um contrato de bombeiro profissional.

Julgo ter focado alguns dos pontos mais importantes no que a este tema se refere. Bombeiros profissionais, devidamente equipados, com funções fiscalizadoras nas matas, um Mercado de Venda de Madeira e contratos de avença a empresas privadas de aviação, são algumas medidas que poderiam ajudar a melhorar a situação.