O amargo sabor da derrota
Não acreditando em Deus nem tendo tido formação católica, sinto-me à vontade para criticar a recente posição expressa por José Saramago em relação à Bíblia, aquando do lançamento do seu último livro, "Caim".
Avaliar um conjunto de textos escritos e reescritos ao longo dos últimos 2500 anos com os olhos da modernidade é de uma enorme falta de vontade. A Bíblia é, acima de tudo, um resumo do mundo judaico-cristão, sendo por isso um reflexo do pensamento colectivo e heterógeneo que o compõe. Dizer, como fez Saramago, que "a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana" é descontextualizar a obra e, acima de tudo, não compreender o próprio Homem. Porque mais crus e duros que a Bíblia são os contos populares, muitos de origem exclusivamente pagã, transmitidos de geração para geração pelas tribos do mundo inteiro. Igualmente cruéis serão muitas das obras-primas da literatura mundial, como a Ilíada, a Odisseia, a Divina Comédia, o Decameron ou a obra de Shakespeare. Foi a Bíblia que foi escrita pelo Homem e não o contrário.
Claro que, para quem acredita na luta dos mais fracos contra os mais fortes e na capacidade dos homens face à adversidade, histórias como a de Job podem parecer mera propaganda da cúpula da Igreja para convencer o crente a sofrer calado, redobrando a sua fé. Mas transmitir a ideia de que perante as dificuldades deveremos manter um espírito positivo e encarar o futuro com optimismo não é muito diferente do que nos dirá hoje qualquer psicólogo. Isto para não mencionar os caixotes de propaganda de regimes comunistas em que as elites do partido, responsáveis pela miséria em que vive o seu povo, lhes tentam transmitir o maravilhoso mundo em que supostamente vivem.
Saramago está cada vez mais só e triste com um mundo que não compreende e de que não gosta. É, no fundo, um comunista lúcido e (por isso mesmo) deprimido, desiludido com o Homem por não perceber a maravilhosa utopia com que ele sonha. Já não acreditando na mudança do Homem, quer apenas atirar-nos à cara a merda que, para ele, nós somos.
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