Ideias Livres

quarta-feira, janeiro 11, 2006

Homens Livres - II


John Lilburne e o Estado de Direito


A liberdade tem sido conquistada ao longo dos últimos séculos com o espírito de dedicação e sacrifício de milhares de seres humanos, que por ela - ou apenas uma imagem pálida do que ela pode ser - deram as suas vidas.

A vida humana e a relação dos cidadãos comuns com o poder, há apenas 400 anos, era de total desequilíbrio e arbitrariedade. Vivia-se, na prática, pela lei do mais forte, em que as regras se reinventavam a si próprias ao sabor de quem mandasse.

Foi nesta realidade que nasceu e viveu John Lilburn, por volta de 1615. E contra ela lutou, de forma quase quixotesca, sem desistir, pondo em causa a sua integridade física e sacrificando a sua vida pessoal. Esteve preso a maior parte da sua vida adulta, batendo-se sempre contra a prisão de pessoas sem culpa formada e de forma parcial. Escreveu mais de oitenta panfletos em que atacou a intolerância, os impostos, a censura, as limitações às trocas comerciais e o recrutamento militar. Defendeu a propriedade privada, o comércio livre e as liberdades associativa, religiosa, de expressão e de imprensa. Bateu-se até à morte pelo Estado de Direito, pela proporcionalidade eleitoral, pela separação de poderes e por uma constituição que limitasse os poderes do governo.

Envolvido na guerra entre o Parlamento e o Rei, ao lado do primeiro, acabou por se afastar quando Oliver Cromwell, também apoiante do Parlamento, quis aprovar uma religião oficial e banir as demais, o que para ele era um acto inadmissível de intolerância - e cuja afronta pagaria durante o resto da vida...

Preso vezes sem conta, aproveitava essas épocas para escrever os seus panfletos reivindicativos. Entre as muitas ideias livres que defendeu ao longo da vida, está a noção da existência de legislação escrita em Inglês, para que todos a ela possam aceder, que só pudesse haver julgamentos com acusação formada, a qual teria de ser coerente com a legislação existente, e que o réu tivesse direito de defesa. Criticou os vários monopólios do Estado ou de interesses nele representados - e, passados 400 anos eles mantêm-se... - defendendo sempre o comércio livre.

Uma das suas frases mais significativas diz "A cada indivíduo é dada uma propriedade individual pela Natureza, a qual não deve ser nem invadida nem usurpada por ninguém. Pois todos, como ele, possuem uma propriedade pessoal, sem a qual não podem ser eles próprios... pois todos os homens nascem, de forma igual, com necessidade de propriedade e de liberdade".

Mas foi na defesa do Estado de Direito que o seu papel foi mais relevante e mais marcas acabaria por deixar. Tendo vivido em plena Revolução Puritana, num dos séculos mais marcantes e conturbados da história de Inglaterra, com o qual a Revolução Francesa teve, inicialmente, muitas semelhanças, Lilburne defendeu sempre o lados mais fraco (que nme sempre era o seu), tentando impôr regras que fossem cegas ao nome ou ideias de quem a elas se submetesse. A ele se deve a noção, visionária para a altura, de igualdade perante a lei: "Que em todas as Leis criadas, ou a criar, todas as pessoas sejam vistas de igual forma e que nenhum Título, Propriedade, Privilégio, Estatuto, Berço ou Posição concedam a alguém algum tipo de isenção do regular sistema judicial ao qual todos os outros estão sujeitos."

Morreu em 1659, doente, vítima de anos e anos de aprisionamentos em condições degradantes até para a época em que se realizaram. O seu nome foi esquecido, talvez por não ter deixado nenhuma obra que compilasse todas as suas ideias. Mas ele foi uma das almas inspiradoras dos pensadores liberais dos séculos seguintes e o primeiro defensor de muitas dos conceitos de justiça e liberdade que hoje estão fortemente implantados na sociedade ocidental.

No entanto, é importante lembrar que em boa parte do mundo não existem ainda muitas das regras básicas de Justiça e Liberdade que Lilburn defendeu na Inglaterra do séc. XVI. Há pessoas presas arbitrariamente todos os dias, pelas suas ideias, pela sua cor, pela sua religião. O clientelismo, forma pobrezinha de corrupção, está culturalmente disseminado no nosso país, 4 séculos depois de ter sido denunciado por Lilburne. O poder político nomeia, à vez, os seus protegidos - felizmente já não manda prender quem o denuncia. E por isso, cabe-nos a nós, aos poucos, fazer o que homens como Lilburne fizeram a tempo inteiro. Porque tudo na vida tem um preço.