Ideias Livres

quarta-feira, junho 22, 2005

Um mundo irreal - A pastelaria

Tive um sonho estranhíssimo sobre um mundo irreal. Foi bastante realista e lembro-me de pormenores de que, normalmente, não nos lembramos quando acordamos.
Era um país muito parecido com o nosso, ao nível das pessoas e do clima, mas a sociedade estava organizada de uma forma bastante diferente. Lembro-me, por exemplo, de estar cheio de fome...

Decidi entrar na primeira pastelaria que me aparecesse à frente, independentemente da sua qualidade. Eu queria mesmo era comer qualquer coisa. Mas tive de andar mais de 15 minutos até encontrar aquilo que presumi ser uma pastelaria, apesar de ter muito pouco a ver com as pastelarias a que estamos habituados. Parecia-se mais com uma repartição de finanças. Entrei, esfaimado, pela loja dentro e deparei-me imediatamente com um daqueles porta-senhas encarnados. Era preciso tirar senha? OK, seja, eu quero mesmo é comer. Saiu-me o número 58. Olhei para a frente e percebi que estavam mais de cinquenta pessoas antes de mim. Tudo bem, deve ser uma daquelas pastelarias concorridas, estilo Versalhes, mas como o balcão é grande, calculo que seja rápido. O cliente a ser atendido era o 05, pelo que tinha, de facto, 53 clientes à minha frente.

Passados quinze minutos, ainda só tinham sido atendidos doze clientes e eu começava a vociferar contra aquele país, onde não era possível comer um bolo ou uma sandes sem ter de perder uma hora numa fila. Pelo meio, tinha olhado para as paredes do estabelecimento, onde se encontravam folhas de papel que, aparentemente, serviriam para efectuar o meu pedido por escrito! Foi nesse momento que, não aguentando mais, abordei um outro cliente que estava a meu lado.

- Desculpe, mas porque é que precisamos de prencher este impresso para pedir alguma coisa?
- É por causa do controlo das calorias.
- Do quê? - pensei ter ouvido um enorme disparate.
- Do controlo das calorias. Eles controlam o que nós comemos.
- Os senhores do estabelecimento?
- Bom, não, o Estado.
- Então, mas eles têm de dar essa informação ao Estado?
- Mas em que mundo é que você vive, homem? Então a alimentação pré-fabricada não é exclusiva do Estado?
- ... - fiquei sem palavras. Tudo se encaixava agora. As semelhanças com uma repartição, o atraso no serviço, a pouca variedade de produtos... Lá comecei a preencher o papel. Logo no cabeçalho tinha uma série de dados relacionados com a minha identidade. Nome, Número de Identificação Alimentar, Índice de Massa Corporal. Não queria acreditar naquilo. Mas, como por magia, estes dados vinham-me à cabeça como se os usasse todos os dias...

Passados mais 45 minutos e estando já à beira do desmaio, chegou finalmente a minha vez. Dirigi-me ao balcão, já com tudo preenchido. "Uma bola de berlim e uma Coca-Cola". "Está a brincar comigo?", respondeu a balconista. "Porquê?" "Acha que isto é um supermercado privado ou quê? Queria luxos destes assim, não? Mais o quê, uma saladinha de frutas?? Olha-me este espertinho." "Então mas não tem nada disto? O que é que têm, então?" "Temos o que sempre tivemos, caro cidadão. Sandes de queijo, fiambre ou mistas e torradas, queques e bolos de arroz, leite ou sumo de laranja." "Um queque e um copo de leite, então." "Bom, mas vai ter de preencher novamente o impresso." "Pois, claro que sim..." - A fome era negra e, naquele momento, submeter-me-ia a qualquer coisa.

Faltava pagar. "Desculpe, quanto é?" "São, ora deixe cá ver, o seu Índice de Massa Corporal é de 30, são 20 cêntimos." O senhor com quem falara antes já me explicara que só havia 10 cafés naquela cidade, com 500 mil habitantes, sendo aquele a 8ª Pastelaria Municipal. Depois de perceber que era estrangeiro - ou que, pelo menos, estava completamente a leste do que se passava - disse-me também que todos os estabelecimentos de alimentos pré-cozinhados, como sejam pastelarias ou restaurantes, eram exclusividade do Estado. Todos não, porque tinham aparecido à menos de um ano algumas pastelarias privadas, após concurso público para aquisição de licenças, mas os preços eram astronómicos. Como tinham produtos únicos e eram só meia dúzia, impunham os preços que queriam. Quando uma pessoa tinha mesmo muita fome e não queria esperar, ia a uma pastelaria privada e pagava 10 euros por um bolo. Expliquei-lhe que, no meu país, os cafés eram detidos pelas pessoas, cada um se quisesse tinha a sua pastelaria ou restaurante, vendia os produtos que quisesse ao preço que quisesse. Ele não quis acreditar. "Então e as pessoas têm dinheiro para pagar os preços tão elevados?" "Bom, os preços são muito mais baixos, apesar de não serem subsidiados, como nas vossas pastelarias públicas. Há sítios mais baratos, outros mais caros, consoante os gostos e as possibilidades. Mas mesmo a tasca mais manhosa tem dez vezes mais produtos do que a vossa pastelaria pública."

Deixei o homem, de boca aberta, a pensar no que lhe tinha contado. Às vezes estamos tão envoltos pelas nossas realidades que nem conseguimos imaginar como elas poderiam ser diferentes... (continua)