Ideias Livres

terça-feira, setembro 05, 2006

A Grande Aliança Anti-liberal

Desde a queda do muro de Berlim e do desmembramento do bloco comunista, falido tanto de ideias como de dinheiro, fruto da sua própria ineficácia, lenta mas fatidicamente autofágica, o mundo que se interessa pelo mundo tem-se interrogado sobre qual o futuro paradigma político do Homem no século XXI.

Alguns, como Fukuyama, falaram do fim da História e de uma longa hegemonia das correntes liberais, que teriam tendência para se disseminar pelos continentes, com maior ou menor oposição, rasgando fronteiras e aproximando os povos, libertando os indivíduos das amarras colectivas, sempre castradoras das minorias – e todos nós somos sempre uma minoria em algo.

Outros, como Huntington, previram um choque de civilizações, cujos pontos de tensão ocorreriam, como sismos, nas zonas de contacto entre diferentes culturas. Esta teoria tem vindo a ser corroborada pela enorme tensão que os EUA, Israel e a Europa têm vivido com os países muçulmanos nos últimos dez anos.

Porém, temos assistido nos últimos anos, no fundo, a uma espécie de fusão de ambas as teorias. Há um mundo ocidental, dominante, que gerou e desenvolveu sociedades liberais, onde os cidadãos têm grandes liberdades e gozam de poucas restrições comportamentais. Este mundo ocidental corresponde, grosso modo, a uma cultura, composta de várias sub-culturas também elas com pontos de conflito. Os povos latinos têm, sociologicamente, um modus vivendi diferente dos povos anglo-saxónicos, fruto da sua história, da influência da religião e das igrejas na construção das sociedades medievais, da sua relação com os Estados, etc. Porém, existem pilares básicos que os unem e que, por comparação com o restante mundo, os tornam aliados estratégicos. Assim, a Europa e as Américas têm hoje, grosso modo, regimes democráticos e liberais, onde os direitos humanos, face à média mundial, são bem defendidos (pese embora a América Central e do Sul continue a apresentar, regularmente, situações inadmissíveis para os padrões europeus).

Como contraponto ao nosso sistema de sociedade, que reconhece a cada cidadão um conjunto vasto de direitos e liberdades, têm-se assumido nas últimas décadas os regimes dos países árabes e de influência muçulmana, fortemente influenciados por leituras fundamentalistas dos seus escritos sagrados, que os têm vindo a afastar dos valores ocidentais – mesmo nos casos, como da Síria, do Egipto e do Iraque de Saddam Hussein, em que os líderes tentam manter os movimentos islâmicos controlados.

Usando o petróleo como portal financeiro entre o Ocidente e o Médio Oriente, matéria-prima sobre a qual os seus antepassados viveram durante milhares de anos sem dela saberem tirar proveito, os líderes árabes têm utilizado os triliões de dólares que recebem por um lado para o sector da Defesa, reprimindo toda e qualquer tentativa de oposição interna, e por outro para financiar os grupos islâmicos, as madrassas e, de forma sustentada, o Hamas, o Hezbollah e células várias da Al-Qaeda, consoante o dinheiro provém de origem xiita (Irão) ou sunita (maioritariamente a Arábia Saudita). O Ocidente vê-se assim perante um dilema complexo e quase irresolúvel, pelo menos no longo prazo. A sua necessidade sustenta quem o quer destruir.

Como se essa dependência não fosse já preocupante, forçando os dirigentes europeus e americanos a tratar nas palminhas chefes de Estado nepotistas e déspotas, sem a mínima vontade de colocar os respectivos países no caminho do século XX e privando os seus concidadãos dos mais básicos direitos, com especial ênfase para a Arábia Saudita, cuja casa real, a família Saud, é constituída por filhos e netos de meros líderes de uma tribo de berberes nómadas do início do último século, eis que surge na Venezuela, possuidora de uma das maiores reservas de petróleo do mundo, um demagogo populista, Hugo Chávez, que, após forçar uma nova Constituição, assumiu o controlo generalizado dos órgãos de poder, das Forças Armadas e das principais forças económicas do país e iniciou uma campanha sem precedentes contra os EUA, fortemente dependentes do petróleo venezuelano. Uma vez mais, são os cidadãos americanos que, com o seu consumo astronómico de petróleo, acabam por financiar a perpetuação de Chávez.

Os últimos meses têm sido, a este nível, muito importantes e começam a vir ao de cima as verdadeiras intenções belicistas do demagogo venezuelano. Chávez tem-se desfeito em elogios a todos os líderes mundiais que, de algum modo, vão fazendo frente aos EUA. Tem estado aliás a levar a cabo um périplo por quase todos os países que nos lembremos de ter regimes autocráticos e populistas e líderes com elevado culto da personalidade. Cuba, Bielo-Rússia, Irão, Síria, entre outros. Aparentemente, Pyongyang ficou para segundas núpcias. Quem sabe também o Zimbabué. O presidente venezuelano começa a criar uma rede de países com regimes com um claro défice democrático, sustentada nos rendimentos do petróleo e com o intuito de isolar os EUA e os seus aliados, contando para isso com o beneplácito da China e da Rússia.

Estamos assim, aparentemente, a assistir à construção de um novo pólo na política mundial, cujo denominador comum parece ser o combate às teorias defensoras da liberdade individual e dos direitos dos cidadãos, regressando a imagem de um Estado paternalista e protector e, ao mesmo tempo, controlador e implacável. Sem nada de muito especial que os una a não ser o ódio aos ianques e tudo o que eles representam, vemos formar-se lentamente uma perigosa aliança anti-liberal heterodoxa, composta por populistas, neofascistas, pós-comunistas e fundamentalistas islâmicos. O segredo do seu sucesso tem de passar pelo aval indirecto da Rússia e da China. A primeira quer voltar a assumir-se como peça fulcral do xadrez mundial e usará as suas reservas de gás natural e petróleo como principal trunfo para ter a Europa nas mãos. A segunda tenta de todas as formas garantir as fontes energéticas de que sabe vir a necessitar a curto e médio prazo, competindo taco a taco com os EUA e fechando os olhos à realidade interna dos países com quem estabelece acordos – a sua bitola é bastante mais baixa do que a americana. Assim, tem conseguido garantir contratos na Birmânia, Chade, Angola, Nigéria, Gabão, Sudão, Irão, Venezuela, numa longa lista que só tende a crescer.

Se a tudo isto juntarmos as ambições nucleares de alguns dos membros desta aliança – Irão, Coreia do Norte e, a médio prazo, Venezuela – apercebemo-nos que podemos estar perante a maior ameaça à paz mundial dos últimos 30 anos e, eventualmente, o maior desafio da Humanidade até hoje.